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LIVRO

'Sem despedidas', de Han Kang, a primeira asiática Prêmio Nobel de Literatura, é editado no Brasil

Obra confirma habilidade da autora em falar do horror que atinge sociedades a partir da vida de duas amigas

Publicado na Coreia do Sul três anos antes de Han Kang se tornar, em 2024, a primeira mulher asiática a receber o Prêmio Nobel de Literatura, “Sem despedidas” finalmente acaba de ser traduzido para o português. Por si só um acontecimento, suas 272 páginas habitam com destaque o universo criativo da autora de 54 anos, assim sintetizado pela instituição sueca: “nos curvamos ante sua prosa poética intensa, capaz de confrontar de forma singular traumas históricos enquanto expõe a fragilidade da vida humana”. ( Leia trecho do livro ao fim deste texto)

Da noite para o dia, e a contragosto, como já declarou, Kang se transformou, com o Nobel, ao mesmo tempo em celebridade nacional e consciência de um país marcado, no último século, tanto pelo impressionante crescimento econômico quanto por episódios de extrema violência, da brutal colonização japonesa (1910-1945) à Guerra da Coreia (1950-1953), travada contra a vizinha do Norte, ando por seguidos governos autoritários, até o restabelecimento de eleições diretas e dos direitos civis em 1987.

Em março deste ano, Kang foi o nome mais notável do documento assinado por 414 intelectuais que pediam o impeachment do presidente Yoon Suk-yeol, de direita, após sua tentativa frustrada de fechar o Congresso e prender políticos rivais. Ele caiu pouco depois, acuado por protestos gigantescos e acusado pela Justiça de tramar uma insurreição para assegurar-lhe poder absoluto. Na última quarta-feira, Lee Jae-myung, de centro-esquerda, foi eleito para comandar o Executivo com a promessa de pacificar o país em meio ao julgamento do antecessor.

Presença na Flip de 2021
Han Kang sintetizou sua decisão de participar do abaixo-assinado bem ao seu estilo, conciso, mas com farta simbologia: “Acredito nos valores da vida, da liberdade e da paz, que jamais devem ser comprometidos. O impeachment assegura aos coreanos a permanência destes valores universais”.

As duas últimas palavras da mensagem são a senha para se compreender o apelo da literatura de Kang além das fronteiras de seu país, desde a surpreendente conquista do Booker Prize, em 2016, pela tradução em inglês de “A vegetariana”, lançado originalmente em 2007. Em seu livro mais conhecido, a busca por autonomia de uma sul-coreana dialoga com os embates do feminino e dos feminismos nas mais diversas sociedades contemporâneas, com uma escrita onírica, prima do realismo fantástico latino-americano.

Dois anos antes de a versão de “A vegetariana” para o inglês multiplicar seus leitores mundo afora, Kang lançara em coreano um de seus livros mais impressionantes, “Atos humanos”, traduzido ao português em 2021, quando ela foi uma das estrelas da Flip, em Paraty.

À época, para contar, a partir da narrativa das vítimas, o Massacre de Gwangju, em 1980, quando 200 estudantes foram assassinados por militares em um protesto contra a ditadura militar, a escritora, que tinha 10 anos e morava na cidade onde o crime se deu, pesquisou documentos históricos e testemunhos de sobreviventes de Auschwitz, da Bósnia e de indígenas americanos, entre outros. De certa forma, frisou, todos seriam protagonistas de seu livro.

Embora não seja exatamente uma sequência de “Atos humanos”, “Sem despedidas” nasceu dele. Em entrevista no início do ano ao jornal britânico Guardian, Kang afirmou que “ao escrever os dois livros, senti ser universal a atrocidade humana que seguimos experimentado no planeta”.

Desta vez, porém, além de denunciar as inevitáveis sequelas para a sociedade do esquecimento histórico, a escritora divorciada que gerencia com o filho único uma livraria em Seul quis contar uma “trama de amor”. No fim do livro, em uma conversa direta com os leitores, ela escreve que buscou escrever “uma obra sobre amor genuíno”.

“Sem despedidas” começa com a informação banal, oferecida pela narradora, a escritora Kyung-ha, de que, naquele dia, “a neve caía esparsa” em Seul. Termina a 465km da capital do país, na ilha de Jeju, com a mesma personagem comprometida a limpar “a neve acumulada no rosto” da amiga Inseon. É preciso enxergar, ainda que o retrato revelado seja aterrorizante. E não inclua a futura satisfação pela descoberta do que de fato aconteceu e o comprometimento de condenar criminosos.

Fotógrafa e documentarista, Inseon congelou sua carreira há tempos para cuidar da mãe, doente, na ilha localizada ao sul da península coreana. Após a morte desta, por lá ficou. Se reinventou como artesã e um acidente de trabalho a levou ao hospital na capital e ao pedido de ajuda à velha amiga: cuidar, em Jeju, de seu companheiro, enquanto ela convalesce. O parceiro de vida é um pássaro raro, que dá título ao primeiro dos três tomos do livro (os outros, batizados com idêntica delicadeza, são “noite” e “chama”).

30 mil pessoas fuziladas
Mesmo enfrentando uma crise de saúde mental, após escrever um livro, tal qual Kang, sobre o massacre de Gwangju, Kyung-ha atende ao pedido de Inseon. Para cumprir a missão, enfrenta uma terrível tempestade de neve, visita a trágica história da mãe da amiga e desenterra verdades terríveis sobre outra chaga coreana — o fuzilamento, em apenas três meses, de 30 mil pessoas, incluindo crianças e mulheres, à época um décimo da população da ilha de Jeju, no inverno de 1948, na infância da Guerra Fria.

No caminho até Jeju, Kyung-ha reflete sobre a longa amizade com Inseon, revisita um projeto da dupla jamais realizado e pondera sobre decisões que acabaram por afastá-las. Ao conviver na ilha com os fantasmas muito vivos da amiga, a ama. A afirmação da sororidade faz Han Kang triunfar em seu objetivo de falar do horror coletivo através de duas personagens que, mesmo distantes fisicamente, não soltam mais a mão uma da outra.

Leia trecho do livro ‘Sem despedidas’, de Han Kang

"As chamas laranja, que se elevam, se curvam flexíveis e oscilam. Sem tirar os olhos delas, Inseon diz: “Eu não contei essa história no filme”.

Faço que sim com a cabeça. É verdade. Na frente daquela parede revestida de cal, ela só falou sobre a escuridão que viu na caverna e em apagar as pegadas assim que eram deixadas na neve.

“Naquela época não sabia disso, pois minha mãe só veio me contar pouco antes de perder a lucidez”.

É possível sentir a velocidade do vento nas bochechas e no nariz. O lustre apagado em cima da mesa de jantar balança lentamente. A chama da vela, que estava tensamente alinhada, encolhe, como se fosse apagar. Dá a impressão de que alguma coisa abraça a casa por fora. Sua respiração, enorme e fria feito gelo, parece penetrar pelas brechas nas vigas, portas e janelas.

“Apenas uma semana depois, meu pai foi pego”, Inseon diz, levantando os olhos da vela. “Ele não conseguiria resistir apenas com a água que pingava do teto da caverna. Saiu pra ver se havia restado algum grão e se deparou com a polícia. Eles estavam emboscando as pessoas que apareciam, para que elas enterrassem os corpos”.

“Então, será que ele encontrou a família?”

Inseon balança a cabeça dizendo que não.

“Não era possível. A cadeia de comando dos militares e da polícia eram diferentes. Ele ficou preso numa destilaria no cais da cidade de Jeju durante quinze dias e depois foi levado para o porto de Mokpo. A polícia que atuava em terra estava esperando no atracadouro e prontamente informou qual era a sentença e onde a cumpriria.”

Por causa da sombra da chama trêmula, não consigo distinguir se a expressão de Inseon se altera momento a momento, ou se é apenas a luz e a sombra que se mexem.

“Mas e as pessoas que os militares prenderam?”

“Elas foram mantidas numa escola de ensino fundamental na cidade durante um mês e depois fuziladas em dezembro, na praia de areia branca que hoje é aberta para banhistas”.

“Todas?”

“Todas, exceto a família imediata dos militares e a dos policiais”.

Os bebês também?

O objetivo era o extermínio.

Extermínio do quê?

Dos comunas."

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