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Um Ponto de vista do Marco Zero

Jangada, bem cultural material

Jangada. Saudade triangular. No verso do poeta. Na memória do menino, a jangada partia às cinco horas da manhã. E voltava no final da tarde. Os clientes já a esperavam. Na praia. Depois que os jangadeiros a rolavam até a areia.

A jangada é construída com seis toras de madeira própria. Tem uma vela triangular, latina, que recebe o vento de frente. E lhe dá velocidade. Possui também dois bancos. Um de vante, dianteiro. E outro de trás, do mestre, que dirige a jangada com remo.

Há cinquenta anos, a jangada de pesca artesanal era uma presença habitual na paisagem do litoral. E os meninos, que batiam bola na praia com os filhos dos barraqueiros de coco, recepcionavam os jangadeiros. Conversavam com eles. E ouviam histórias extraordinárias. De pescas notáveis. Eles ouviam. Sabendo que eram mentiras. E os jangadeiros, contavam, sabendo que não eram verdade.

Vejo a jangada, parada, aguardando a próxima partida. Mas, hoje, ela tem um quê de coisa pré-histórica. Um ar de objeto estranho. Que não pertence ao planeta dos softwares. Movidos a IA.

Fico pensando: é urgente acelerar a política de proteção dos bens culturais, materiais e imateriais. Para que possamos guardar e reconhecer parte importante dos bens e valores que compõem nossa história. Nossa memória. História é memória.

Por isso, lanço daqui, diante das ondas de Netuno, neste domingo azul do mar, como disse Paulo Mendes Campos, pedido ao Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural de Pernambuco – CEPPC. Para que a jangada seja tombada como bem cultural material. Para lembrar a pesca artesanal, o pescador de praia. A vela branca que viaja diariamente. Levando saudade e trazendo alimento. E sobretudo perpetuar as imagens de um cenário, uma cultura, um fazer, um povo, lírico, tropical. Pernambucano e nordestino.

O pedido para tombar a jangada, como bem cultural material de Pernambuco, se apoia em três ordens de valor.

1 Valor cultural: instrumento para pesca artesanal, realizada desde os primórdios da formação econômica do país, ligada a sobrevivência da atividade de famílias de pescadores. Formando colônias, com espírito associativo, sedimentando uma forma de vida e de sobrevivência. Aberto ao céu cotidiano. E à ventura do mar.

2 Valor social: uma atividade socioeconômica que guarda traços do modo artesanal de gerar renda para empreender o sustento familiar. Disseminando ambiente produtivo de geração de uma tecnologia artesã, própria. Que fincou as bases de um meio de subsistência quando não havia recursos tecnológicos mais avançados. Era a coragem do mar. Ou o nada.

3 Valor histórico: a necessidade de reconhecer, valorizar e preservar bem cultural material que guarda características específicas. Próprias de fazeres da população litorânea do Nordeste brasileiro. E, no caso, de um dos estilos de vida do pernambucano.

O pernambucano tem vocação atlântica. Desde exportação de açúcar via Porto do Recife, século 16. Até logística contemporânea de Suape, século 21, de onde avista África e Europa. O pernambucano, jangadeiro, guarda Ulisses. Praticando odisseias diárias. Idas e voltas a sua Ítaca. Projetando na memória cores de civilização tropical.

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