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Direito e Saúde

Saúde à venda: o lucro acima da ciência e da ética

A saúde, direito fundamental garantido pela Constituição, está sendo cada vez mais tratada como uma oportunidade de negócio por quem enxerga no sofrimento humano um nicho de mercado. Em tempos de redes sociais, influencers e marketing emocional, cresce a oferta de terapias, exames, suplementos e tratamentos sem qualquer base científica – e com preços exorbitantes. O alvo é claro: o desespero dos pacientes e de suas famílias.

O que se vê, na prática, é a transformação da dor em moeda. Doenças crônicas, transtornos como o autismo, o TDAH e a depressão, além de condições complexas como câncer, Alzheimer e esclerose múltipla, são utilizadas como vitrine para a venda de “curas milagrosas”, “protocolos naturais” e “alternativas integrativas”. As promessas variam, mas o padrão se repete: marketing agressivo, linguagem pseudocientífica, desqualificação da medicina tradicional e altos valores cobrados.

O lucro é bilionário. Um só protocolo pode custar milhares de reais por mês, incluindo suplementos “personalizados”, consultas fora do SUS e exames sem validação. Cursos online e mentorias prometem formar “especialistas” em poucas semanas, enquanto plataformas de vídeos e redes sociais amplificam o alcance de falsas promessas.

Entre os exemplos mais preocupantes:
- Vendas de suplementos ditos “funcionais” para todas as doenças, mesmo sem prescrição ou necessidade real;
- Exames genéticos e hormonais oferecidos sem respaldo técnico, com interpretações fantasiosas para justificar tratamentos caros;
- Cursos e mentorias sobre “cura do autismo”, que cobram valores altíssimos por informações falsas ou enganosas;
- Produtos proibidos pela Anvisa, como o MMS, sendo vendidos como solução universal;
- Marketing de médicos ou não médicos que cobram por diagnósticos via redes sociais, sem nenhum exame clínico ou critério técnico.

O mais grave é que muitos desses serviços são oferecidos por profissionais sem habilitação médica, ou por pessoas que se apresentam como terapeutas, coaches ou “especialistas em saúde integrativa”. Há também profissionais de saúde que ultraam os limites de sua atuação, invadindo a medicina com ares de autoridade, movidos por prestígio ou interesse financeiro. Isso configura, inclusive, exercício ilegal da medicina, crime previsto no art. 282 do Código Penal.

Dados recentes revelam a gravidade da situação: entre 2012 e 2023, o Brasil registrou cerca de 10 mil casos de exercício ilegal da medicina, segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina. Isso equivale a quase dois casos por dia, envolvendo prejuízos financeiros, danos morais, sequelas e até mortes de pacientes atendidos por profissionais sem formação médica.

Paralelamente, a judicialização da saúde tem se intensificado. Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) registrou mais de 98 mil notas técnicas relacionadas a processos judiciais na área da saúde, representando um aumento de 40% em relação ao ano anterior. Muitas dessas ações envolvem a solicitação de terapias sem comprovação científica, colocando em risco a segurança dos pacientes e sobrecarregando o sistema judiciário.

A lógica por trás de tudo isso é simples: quanto mais desinformado ou vulnerável estiver o paciente, mais fácil será explorá-lo financeiramente. E isso tem consequências sérias. Muitas vezes, além de perder recursos com terapias ineficazes, o paciente sofre agravamento do quadro clínico por abandonar o tratamento correto.

É necessário que o Poder Público, os Conselhos Profissionais e o Ministério Público ampliem a fiscalização e a responsabilização dessas práticas. Plataformas digitais também têm responsabilidade ao permitir a disseminação de conteúdos falsos e promoções enganosas. Mas é igualmente urgente fortalecer a educação em saúde da população, promovendo a valorização da medicina baseada em evidências e o senso crítico frente a promessas milagrosas.

O Direito, nesse contexto, deve funcionar como instrumento de proteção coletiva, combatendo práticas enganosas, promovendo a responsabilização civil, istrativa e penal dos envolvidos, e assegurando que decisões judiciais em saúde estejam ancoradas em evidências científicas.

 A judicialização da saúde, embora necessária em muitos casos, não pode servir como via para legitimar terapias perigosas ou não comprovadas. Cabe ao Judiciário, com apoio técnico qualificado, atuar com responsabilidade e prudência, protegendo os pacientes e fortalecendo a confiança na ciência.

A medicina não é uma indústria de soluções rápidas, e tampouco pode ser submetida à lógica do lucro a qualquer custo. O que está em jogo é o bem mais valioso do ser humano: a vida.
 

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